O dia em que fui uma Kariri

Na tribo dos Kariris-Xoco, no interior de Alagoas, as mulheres começam cedo na função de mães. Entre os 13 e os 18, já têm o primeiro rebento. Aos 21, casadas e com cerca de 3 filhos, sobra pouco tempo para outras atividades fora a de donas de casa. A não ser que essa atividade seja jogar futebol.

Há mais de dez anos, as guerreiras Kariris decidiram montar um time feminino na aldeia, o Universal. Começou com uma conversa, evoluiu para uma pelada no quintal de alguém e hoje, com uniforme pleiteado diante da prefeita e torcida orgulhosa, essas mulheres já chegaram até a jogar na capital Maceió.

O time, montado depois de algumas meninas passarem de casa em casa em busca das jogadoras. De netas à avós, todas podem participar

O futebol das Kariris é rápido, com muita bola para frente e correria para tentar um chute a gol. Como no time há jogadoras de 12 até 40 anos, há também muita gente que cansa no meio do caminho, enquanto outras voam de um lado para o outro, atuando em múltiplas posições. Mas, o que falta em técnica, sobra em vontade de jogar. Mais ainda, vontade de ganhar.

Orgulho do uniforme, pleiteado diante da prefeita de Porto Real do Colégio, cidade alagoana onde fica a tribo

Eu tive a chance de jogar junto com essas guerreiras, com direito a uniforme e tudo! O adversário? Meninos com idades não acima dos 14. A partida, num campo cheio de obstáculos, de cocô de cavalo a chinelos e pedras, começou às 11h30. Imagine o calor que faz no interior de Alagoas nesse horário. O uniforme, de poliéster, pesava sobre a pele. Os pés, com “sola fina de mulher branca”, já apresentavam duas bolhas, uma delas aberta. Meia hora de jogo, sandálias em uma mão, máquina fotográfica em outra, tocando na bola apenas quando ela insistia em surgir à minha frente, eu já estava morta. O juiz deve ter percebido e se ofereceu para carregar minhas coisas. Dez minutos depois, ele finalizou o jogo.

Os "adversários" das Kariris no jogo-exibição do qual participei. Meninos com não mais de 14 anos que pareciam se multiplicar em campo
A torcida era composta basicamente por filhos e filhas das jogadoras - a maioria louca para entrar em campo e "brincar" também
No campo: pedras, cocô de cavalo, camisetas e chinelos. Mas ninguém ligava, não

Ufa? Não, nem de longe. As guerreiras querem mais, querem marcar! Volta todo mundo para o campo. São nove do nosso lado e… 15 do outro? Pois é, o time adversário ganhava jogadores a cada minuto. Meninos que, sabendo do evento, se enfiavam lá no meio para ganhar das Kariris.

Recomeça a correria. Cinco minutos de jogo e eis que surge um pênalti para as meninas! Mas foi? Não importa, o juiz também está cansado e com calor. E os adversários não são nem loucos de gritar com as próprias mães, tias e vizinhas. A 10 das Kariris prepara a bola, encara o goleiro e… na traaaave! Fim de jogo, não dava mais. “Bora se refrescar?” Cantando e sorrindo, seguem todas para o rio (o São Francisco). Depois, volta todo mundo para cuidar do almoço, da casa, dos meninos.

Partida sem gols. E levando a torcida (o futuro) nos ombros

E assim, aos poucos, o Universal vai deixando de existir. Depois do casamento e dos filhos, não sobra tempo para treinar ou corpo para aguentar o tranco, ou assim dizem as guerreiras. Eu, particularmente, não sei se acredito nesse discurso das Kariris. Eu, que vi de perto a empolgação dessas mulheres ao vestirem o uniforme azul e amarelo, questiono se esses motivos são, mesmo, fortes o bastante para se abandonar uma paixão. Mas eu, bom, eu não tenho os pés dessas guerreiras; não suportei, descalça, as pedras que já enfrentaram. Apenas tive a honra de jogar com elas.

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12 comentários em “O dia em que fui uma Kariri

  1. Que belo e original texto. Parabéns Paula.
    Pelo que vc descreveu, é exatamente isto que esta faltando ao nosso futebol: Vontade e amor ao esporte.
    eta
    walter

  2. Nossa Paulinha, o que dizer!!!
    ESPETACULAR
    As pessoas se tivessem um pouquinho da vontade ou da persistência dessas mulheres, o Brasil seria um país Melhor…
    E o que falar de nosso futebol, onde o que importa é apenas o RRR$$$, se nossos jogadores tivessem 10% do AMOR pelo esporte que essas mulheres demonstram, nós seriamos campeão todos os MUNDIAIS.

    PARABÉNS pela Excelente profissional e pessoa maravilhosa quevocê é.

    Orgulho….
    eta

  3. Quando vc falou:”obrigada mãe, por me criar sem frescuras”, eu entendi o quanto vc cresceu como ser humano e como profissional. Deve ter sido uma experiência linda e
    que vc descreveu lindamente, delicadamente a força dessas mulheres.Adoro o modo
    como vc faz tudo parecer melhor. Aprendi com vc que atitudes delicadas têm mais
    força que um grito. Parabéns.ETA.

  4. Paula, muito bom mesmo!
    Gostoso de ler, vc deu sua mensagem e nos fez refletir.
    Aqui na agencia já estamos marcando uma nova visita a Aldeia.

  5. Excelente seu texto, que descreve de forma sútil e alegre a verdadeira vida destas bravas guerreiras!!!

    No dia a dia, este time enfrenta todos os obstáculos bravamente que são: o abandono, a fome, ausência de médicos, a falta agua tratadade, a violência e o preconceito ESMAGADOR QUE PAIRA SILENCIOSO SOBRE OS INDÏGENAS NO BRASIL…e vão driblando incansavelmente em time ou sozinhas…. com diversos calos e bolhas na alma e mesmo assim possuem um amor incondicional!
    Elas são as mães desta nação, o primeiro grande time, donas desta Terra!

    Fico muito feliz que você tenha tido esta experiência maravilhosa!

  6. Oi Paula, parabens pelo seu trabalho, maravilhoso, nota 10,
    abraços da Tia, Tio e primos de Araraquara-SP.
    Te amo Célia Galvão.

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